20.7.14

Goya, Nacionalismo e Inferno


















 












12/17/13 at 3:29 PM

1- "pão e touros", já te tinha mandado um excerto do panfleto provocatório do León de Arroyal, aqui o surgimento de uma "classe" muito interessante dentro das classes baixas populares , Majos y Majas, as ralés urbanas ultraconservadoras, que vestem fatos exagerados de um folclore tipicamente espanhol que se vai formando (birth of complex lenita). Que nas touradas se vêm representados no matador a pé, que provém da sua estirpe, e que complementa os até então exclusivos toureiros aristocratas (ou assim para o nobre) a cavalo. Os majos e as majas vão passar os domingos em grandes piqueniques nos arrabaldes à saída da urbe e distinguem-se de certas juventudes mais previligiadas influênciadas pelo iluminismo(os pobres, os mesmo da miséria, aparentemente ainda não entram nesta equação), procuram bulhas com eles e chamam-nos "afrancesados".  
2- "eu vi isto", a direita, os monarcóides em geral vão invocar a guerra de independência de 1808 aquando do golpe`36, o 2 de maio, a devastação do napoleão, um caos, e uma vergonha frustrante para um movimento liberal que se vai enterrar à grande. 
«O Dois de Maio de 1808, ocorrido em Madrid, é um dos acontecimentos que mais tem sido interpretado, apropriado e manipulado
historicamente pelos diferentes regimes, partidos e ideologias implicadas no processo de “construção”, definição e consolidação discursiva da nação, da memória colectiva, da identidade e do Estado nacional espanhol.»  (Janete Abrão) 
o nacionalismo(ainda está só a começar) e o tradicionalismo modernos(contrasenso?) vêm daí. E são ilustrações negras dessas contradições que o goya faz.
«A reacção pode implantar-se a partir das alfurjas do estrangeiro, mas nunca a revolução se exporta nas pontas das baionetas.»
3- "disparates", fazendo referência a uma das séries de gravuras brutais do méne (como os desastres e os caprichos), é descrita a descida aos infernos deste período, aos vários infernos, aos interiores, aos metafóricos, aos do imaginário colectivo, ao da guerra imperialista, ao da psicose nacionalista. Uma ligação, talvez forçada, aos subterrâneos ibéricos de que falavas e que procuras (mais uma).
e há muita pintura e gravura a acompanhar isto, claro. e muitas biografias paralelas.
Onde se arruma isto? aqueles caixotes ainda existem? no arquivo mais geral? (memória/arquivo/ficção). Já tens alguma coisa empilhada? 
Ainda não tive tempo de ver uma data de coisas (até algumas que te mandei). Tenho de ver o orlando ribeiro, que  não conheço, geografias sociais parecem interessantes. No outro dia surripiei o "erotismo" da biblioteca de um amigo meu, de maneiras que o tenho aí e vou folheando.. Outras coisas virão. Não sabia nada da "mala de cartão", parece-me óptimo um diálogo com o Brandão.. no mínimo. Promete.  Enfim, tem tudo um ar gostoso..
Em relação ao arquivo, acho que acrescentaria mais dois caixotes ou sub-caixotes: memórias afectivas (nossas) e ensaios/fugas para quando se quiser experimentar um lirismo ou uma condução qualquer. 
Mas pronto, como te disse, não consigo discorrer muito sobre o macro agora, dentro da cabeça. Vou pista a pista... para não me perder.
E é isso, e tu? a quantas andas?
até,
bejo
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PAN Y TOROS
O majo e a maja, que são para o povo espanhol dos anos de 1780 o que o pícaro fora um século mais cedo, o que o incroyable foi para a burguesia de 1800, o que o zazou será para a para a pequena burguesia de 1944, são a encarnação ingénua e pitoresca das contradições e dos sentimentos do povo espanhol de então. Esta bela ovelha ranhosa mai-la companheira são os melhores rapazes e raparigas de certo mundo. Sempre prontos a armar zaragata ou a partir a loiça toda, a ajoelhar-se diante de uma procissão, a gritar: «Viva o rei!», E a achar que a Espanha antiga possuía todas as virtudes, que hoje em dia se perdem. Desconfiam dos filósofos e dos discípulos das luzes, que querem transplantar para Espanha reformas talvez necessárias, mas seguramente estrangeiras. Como os industriais de 1927 iam dançar à rua da Lappe, os grandes senhores de 1780 disfarçam-se de majos de majas, aplaudem no teatro os Sainetes populares de Ramon de la Cruz, caros à gentinha madrilena, recebem em sua casa os toreros e disputam os comediantes.
(...)
EU VI ISTO 
Quando os regicidas de Paris, ao mesmo tempo que a cabeça de um rei, fazem em postas o pilar do feudalismo, a Espanha inteirinha é transportada pela indignação. A guerra que Manuel Godoy declara à República Francesa é uma guerra nacional. São recursos voluntários e o sangue entusiasta do povo que erguem esse exército cujo objectivo é libertar a França do jugo infame da liberdade. Bastam algumas semanas para que esse grande vento caia, que esses recursos se esgotem, e que esse entusiasmo dê lugar ao derrotismo. O próprio Godoy constata: Ninguém aprovava a marcha violênta da Revolução francesa, mas abraçavam-se de boa vontade as teorias que a  tinham produzido; via-se com maus olhos uma cruzada armada para a abafar.  Godoy esse, segue sempre os movimentos que finge dirigir, suspende as despesas, assina em 1795 a paz de Basileia. É em 1798, três anos mais tarde, que Goya pinta o retrato do embaixador de França em Madrid, o ex-regicida Ferdinand Guillemard. O homem que votou a morte do Bourbon de Paris representa a França junto do Bourbon de Madrid. Godoy escreve dessa época: A geração nascente mostrava uma predilecção muito viva pela nova França... sobretudo os jovens da classe intermediária, e alguns das classes priveligiadas. Mesmo em Madrid ...viu-se ...as damas da mais alta nobreza mostrarem-se em público, enfeitadas com fitas tricolores. (...)
 Para Goya e os amigos, nenhuma dúvida: a França revolucionária é a pátria da Liberdade. E continua a sê-lo a seus olhos, quando ela se torna a presa desse pequeno Corso ambicioso, que começa por ser a encarnação da revolução armada, antes de ser a revolução asfixiada. Todas as contradições que vão dilacerar Goya, os amigos, o povo espanhol, vêm daí. As alternâncias entre submissão e revolta, de indiferênça e resistência, que nos chocam em Goya, como em tantos dos seus contemporâneos, existe sobretudo esse conflito latete, ainda mal decifrado por eles, que opõe, na ambiguidade de Bonaparte, a França de 1789 ao Império de 1802. 
A maior parte dos amigos de Goya, para quem a França é pátria das luzes e a conquistadora da liberdade, aderem ao novo regime: Moratin, Melendez, Valdez, Yriarte, Llorente. Goya assiste à sessão da Academia em que Yriarte saúda em José o sábio monarca D. José I (o ingénuo irmão de napoleão que este põe a governar madrid). 
  Jovellanos é mais lúcido. Entreviu imediatamente que a ocupação militar não pode em nenhum caso significar libertação de tiranias. A emancipação social e a presença de soldados estrangeiros são incompatíveis, e o exército dos invasores está às ordens de um rapace. José I bem pode dar-se ares de monarca esclrecido e protector do povo. Napoleão está-se nas tintas para os seus esforços que, em definitivo, servem os seus objectivos. Servem como uma máscara serve um malandrim. José é o "homem de palha" ingénuo do manhoso irmão. Enquanto José abole a Inquisição, decreta a suspensão dos direitos feudais, espadeira no papel as instituições da feudalidade, Napoleão torpedeia tranquilamente os seus esforços fazendo da Espanha uma nação desmantelada, sangrada ao estremo para sustentar o esforço da guerra imperial.  Jovellanos vê claro: Eu não pertenço a um partido, diz ele, mas à santa casa da independência da minha pátria... Poderá José aplicar os belos princípios do rei filósofo a um povo devastado por soldados estrangeiros? A reacção pode implantar-se a partir das alfurjas do estrangeiro, mas nunca a revolução se exporta nas pontas das baionetas.  O exército francês, acolhido pela simpatia passiva ou pela indiferença benevolente do povo espanhol, alguns meses bastam para que apareça como o que sempre foi: um exército inimigo. (...)
OS DISPARATES
William Blake é simplesmente um homem cujos pesadelos são a «projecção» das paisagens industriais da Inglaterra do seu tempo, cujo inferno, como o demonstrou o crítico inglês Klingender, é directamente inspirado pelas fábricas infernais em que penavam os operários de Manchester. O autor de Cantos da inocência e de experiência é um demente perfeitamente razoável.  (...)
Quando pinta o inferno, é porque é contemporâneo do inferno. Mas Blake é um grande poeta, e um desenhador medíocre. E, no entrelaçado das suas contradições e quimeras, nessa mistura singular de espírito revolucionário e alucinação metódica, há qualquer coisa que faz dele o contemporâneo de alma e data do velho surdo. Goya podia escrever, à margem dos seus pesadelos nocturnos e sob as suas visões de guerra: Eu vi isto. E Goya, sem dúvida mais por prudência de que por descuido, omitiu pôr legendas a muitos dos Disparates, essas legendas existem de antemão: são os Provérbios do inferno de Blake: Se o louco persistisse na sua loucura dava em sábio...  As prisões são construídas com as pedras da religião...  A alegria engendra, a dor traz ao mundo...   O que é fraco pela coragem é forte pela manha...  O ar está para a ave, ou o mar para o peixe, como o desprezo está para o desprezível...  Os tigres da cólera são mais sábios que os cavalos da instrução. (...)
Os Disparates são a descida aos infernos de Goya. Ele vem de lá. Sabe que o inferno é a estupidez, e que a estupidez é tirania. Os demónios de Goya terão uma posteridade directa. Nas litografias que Delacroix, fascinado por Goya, consagra ao Fausto de Goethe, tornamos a encontrar esses monstros agachados na sombra que, de Théophile Gautier a Baudelaire, resumiam para o romantismo a mensagem de Goya. Porém, ao lado das criaturas abissais de Goya, os monstros de Delacroix são reconstituições arqueológicas, como as gárgulas que Viollet-le-Duc acrescenta à Notre-Dame. Não passam de «monos» divertidos e pitorescos. Ao passo que, para Goya, os monstros são realidade. À margem de uma gravura dos Caprichos, escreveu: Os demónios são os que fazem mal impedindo os outros  de fazer bem, ou não fazem coisa nenhuma. (Esta gravura dos Caprinhos representa dois monges caricaturais, empaturrando-se complacentemente).
 Realidade, os demónios eram-no para Bosch ao qual os Disparates impõem a referência, e antes de mais pelo título, que Goya pede emprestado aos críticos espanhóis de El Bosco. Eram-no com uma precisão, um rigor que Goya, de certo, não tem. (...)
E, ao termo dos Disparates, a subida dos Infernos também é uma ascensão do animal para o homem, vitória do espírito sobre as bestas que grunhem nas pregas da humanidade desfeita.
Porque Goya sobe dos infernos. É muito belo que os Disparates terminem com uma gravura que dir-se-ia o par exacto, e o contraponto, de uma das tábuas precedentes, esse «Disparate de tontos», disparate dos imbecis em que cinco touros enlouquecidos são projectados no espaço sideral. A última tábua dos Disparates não é horrível, nem talvez tão obscura, como se poderia julgar. Os cinco homens voadores de Goya, musculados, de capacete, planando num céu soberano, não são vítimas precipitadas nos abismos, mas ícaros vencedores, dominando a gravidade que faz cair nas profundezas as bestas desamparadas.  (...)

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