Houve aqui à anos um profundo e cavo filósofo de além-Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto - o que diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele que há dois princípios no mundo: o espiritualismo, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e abstractas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do Cavaleiro da Mancha, D. Quixote; - o materialismo, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.
Mas, como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam contudo juntos sempre, ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.
E aqui está o que é possível ao progresso humano.
E eis aqui a crónica do passado, a história do presente, o programa do futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho.
Depois há-de vir D.Quixote.
O Senso comum virá para o milénio: reinado dos filhos de Deus! Está prometido nas divinas promessas.... como el-rei da Prússia prometeu uma constituição; e não faltou ainda, porque ... porque o contrato não tem dia; prometeu mas não disse para quando.
Ora nesta minha viagem Tejo arriba está simbolizada a marcha do progresso social: espero que o leitor entendesse agora. Tomarei cuidado de lho relembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.
Almeida Garrett, Viagens na minha Terra (capítulo II)
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