22.1.14

Passagem de um texto de Rui Eduardo Paes sobre música, utopias e o livro The Dispossessed de Ursula Le Guin:

(...) Por algum motivo Kim Stanley Robinson, sustenta peremptoriamente que "a Ficção Científica é, presentemente, a mais importante forma de arte". Aliás, a FC tomou nos últimos 50 anos o lugar que as utopias tiveram desde, pelo menos, o século XVI e um visionário chamado Thomas Morus. Com a vantagem de o imaginário utópico actual, seja o projectado para outros planetas (The Dispossessed, Ursula Le Guin) como aquele que refere um tempo terrestre derivado dos presentes circunstancialismos (The Free, Mike Gilliland) ter perdido o clássico carácter distópico...

  Afinal em Arrares, o mundo que aplica os princípios da filosofa anarquista Odo (cuja obra Le Guin imagina como uma síntese das ideias libertárias desde Proudhon até 1974, ano em que publicou o livro), no já referido The Dispossessed, a música, tal como de resto, todas as demais artes, "não é considera como tendo um lugar na vida, sendo antes uma técnica básica da vida, à semelhança do discurso falado". Se todos aprendem a cantar e a tocar um instrumento desde crianças e se todos criam (ou não) música quando o entendem, na sociedade odonista não há músicos profissionais nem propriamente "concertos". A música faz parte do quotidiano, mas não dispõe de um espaço próprio e diferenciado no aparelho de produção, nem de círculos de distribuição ou de divulgação específicos.

  Até um ilustre, ainda que polémico, cientista como o protagonista Shevek dedica uma boa parte da sua atenção ao trabalho socialmente útil no imediato, surgindo a Física apenas como um part-time no seu dia-a-dia ou como uma actividade concentrada e períodos isolados na sua duração. Ora, não sendo a música considerada um bem de primeira necessidade, os odonistas criam-na somente nos tempos que o ensino da música lhes deixa livres, inserindo-a em contextos de socialização dos trabalhadores em que todos são músicos e ouvintes em simultâneo.

  Como escreve Ursula Le Guin quando Shevek assiste a um espectáculo na capitalista Abbenay, "ele pensava que a música era algo que se fazia e não que se ouvia". Pela primeira vez, testemunha um momento musical fruto da divisão e da especialização do trabalho, em que músicos tocam para não-músicos. Esta diferenciação social entre "produção" e "consumo" está no cerne mesmo do fenómeno pop. Se todos tivéssemos habilitações musicais não haveria tops ou hits. Nem de resto, Ghost Mice ou Jello Biafra.

  É neste ponto que a utopia da escritora norte-americana se confirma como uma contra-utopia, ou seja, uma utopia que a si mesma se denuncia, expondo, desmontando e recusando as suas tentações absolutistas. Mesmo não havendo governo, patrões e hierarquias, a sociedade e os seus utilitarismos constituem, ou podem constituir, um constrangimento à liberdade dos indivíduos.

  Só em parte Bakunine tinha razão quando dizia que uma pessoa só é livre quando todas as outras também o são. Todos esses outros homens e mulheres livres podem ser a causa de não o sermos nós mesmos...

  Como afirma a personagem Bedap sobre o "sofrimento espiritual" de alguém que deseje outra coisa que não aquilo que é pretendido pela generalidade dos cidadãos, alguém, por exemplo, que sinta a necessidade de se expressar musicalmente a tempo inteiro: "O sofrimento de pessoas que vêem o seu talento, o seu trabalho, a sua vida perdidos. De boas mentes submetidas a gente estúpida. De força e coragem estranguladas pela inveja, pela ganância do poder, pelo receio da mudança. A mudança é liberdade, a mudança é vida - há algo de mais básico no pensamento odoniano do que isso? Mas nada mais muda. A nossa sociedade está doente."

 É o que se passa, precisamente, com Salas, o compositor. Porque os mandatados do Sindicato dos Músicos não gostam do que faz, impedem-lhe uma maior dedicação à escrita. Numa reacção de rebeldia, ele recusa-se a dar aulas... "É que eu não componho dessa maneira que se ensina no conservatório. Componho música disfuncional. Eles querem corais, mas eu odeio corais. Querem peças de harmonia aberta como as que Sessur escrevia, mas eu odeio a música de Sessur. Estou a escrever uma peça de música de câmara e vou chamar-lhe "O Princípio da Simultaneidade" [nota: o mesmo nome da teoria física de Shevek]: cada um dos cinco instrumentos toca um tema cíclico independente, sem causalidade melódica, com o processo de desenvolvimento surgindo inteiramente da relação entre as partes."

  Infelizmente, como Sala conclui, "eles não ouvem, não querem ouvir". É a vertente colectivista da Anarquia que se contrapõe à individualista, comprovando que os preceitos comunistas de Kropotkine só fazem sentido quando se colocam em prática também os "egoístas" de Stirner, sob o risco de se instalar outro totalitarismo.

  Repare-se no comentário de Bedap: "Como podem eles justificar esse tipo de censura? Tu compões música! A música é uma arte cooperativa, orgânica por definição, social. Pode ser a mais nobre forma de comportamento social de que somos capazes.E é com certeza um dos mais nobres trabalhos que um indivíduo pode desempenhar. Pela sua natureza, pela natureza de qualquer arte, é uma partilha. O artista partilha, é essa a essência da sua actividade." Ou seja, "a complexidade, a vitalidade, a liberdade de invenção  iniciativa que estavam no centro do ideal odoniano estão a ser deitados fora". "Estamos a voltar à barbárie."

  The Dispossessed vira os princípios anarquistas contra os próprios princípios anarquistas, apresentando a sociedade alternativa não como uma solução perfeita, mas como algo que tem os seus inerentes paradoxos e é necessário aperfeiçoar continuamente. Nada que se assemelhe ao congelado e estéril Falanstério de Fourier. Seja como for, um Jello Biafra ou um Lemmy não podem esperar um cenário minimamente parecido com aquele que os conduziu à fama. (...)










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